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Violência contra a mulher, retrato de uma sociedade doente

 

   Algo frustrante para muitos leigos, e até não leigos, é saber que uma mulher apanha do parceiro e continua com ele. Mas é preciso compreender o ciclo da violência, que vai da lua de mel à tensão à explosão (quando ocorre a agressão, física ou verbal ou ambas), voltando à lua de mel, em que o marido ou namorado se mostra arrependido e jura que não vai fazer aquilo de novo, e a mulher acredita. E todo o ciclo se reinicia.

 

   Mônica Ferreira, delegada-chefe da Delegacia Especial de Atendimento à Mulher, em Brasília, tenta responder por que uma mulher aceita continuar a relação. Há uma série de motivos. Segundo a delegada, é um mito que a mulher não se separa por depender economicamente do marido. Este é um dos fatores, mas está longe de ser o único. A mulher reata a relação porque é ameaçada de morte (e, considerando os índices de que 15 brasileiras são mortas por dia, boa parte pelo parceiro ou ex, ela tem razão em crer que a ameaça pode se concretizar), porque tem medo do que pode acontecer aos filhos, e porque geralmente não tem apoio dos familiares (que a aconselham a continuar com o marido)

 

   E também, de acordo com Mônica, por ter baixa autoestima (a mulher agredida muitas vezes acha que não arranjará outro homem por estar mais velha e com filhos, e, o que é mais triste ainda, que se tiver outro, ele a tratará do mesmo jeito; seria como trocar “seis por meia dúzia”), por ter esperança que o parceiro mude, e por se preocupar com o sofrimento dele. Mas o principal, principal mesmo, é que vivemos numa sociedade que nos diz que mulher sozinha não presta. O importante é ter um homem, mesmo que ele faça da sua vida um inferno.

 

   A sociedade inteira se mobiliza para condenar uma mulher sozinha. Mulher sem homem é vista como sempre disponível, casa sem homem não é respeitada. Revistas femininas vivem publicando matérias do tipo “Como segurar seu macho”. A mulher é educada para acreditar que tem que casar. E, ao casar, por mais que o homem seja um agressor, a mensagem que permanece é “Sou infeliz, mas tenho marido”. Portanto, quando a mulher toma a decisão de deixar o parceiro, ela não está apenas rompendo com ele. Está rompendo com todo um modelo de vida que lhe foi ensinado. Lenore Walker chama isso de Síndrome da Mulher Espancada, em que a mulher é colonizada por uma cultura patriarcal.

 

   Já para a escritora americana Leslie Morgan Steiner, autora do livro Crazy Love (Amor Louco), ela mesma uma sobrevivente, a violência doméstica passa por vários estágios, e nem todos são fisicamente agressivos. O primeiro estágio é criar a ilusão de que a futura vítima domina a relação. É a fase da sedução, em que a mulher será muito bem tratada pelo parceiro.

 

   O segundo estágio é isolar a vítima. É nessa fase que o agressor fará tudo que é possível para separar a mulher da sua família e amigos. Muitas vezes ele exigirá que a mulher largue o emprego ou os estudos e se mude para outra cidade com ele. O próximo estágio da violência doméstica é apresentar a ameaça da violência, para ver como a vítima reage. Assim que chegaram à nova cidade, o marido de Leslie comprou três armas de fogo. A partir daí, sua vida passou a correr risco todos os dias. Quando o parceiro enfim a agride, a vítima já está presa numa teia. Leslie conta que ela não se via como vítima, e sim como uma mulher forte e apaixonada por um homem muito perturbado. Ela acreditava que era a única pessoa no mundo que poderia ajudá-lo.

 

   O estágio final da violência doméstica é matar a mulher. São duas as situações em que a mulher espancada passa maior perigo. Uma, bastante óbvia, é quando ela decide se separar. Como dessa forma ocorre um rompimento na relação de poder, o parceiro sente que não tem mais nada a perder. A outra situação (para mim surpreendente) é quando a mulher está grávida. Porque o marido ciumento tem toda a neurose de que o filho não é dele.

 

   A Lei Maria da Penha está sendo muito positiva por fazer com que mais mulheres denunciem casos de agressão. Antes da lei, de cada dez mulheres agredidas, apenas duas denunciavam. Mas ainda é pouco, e dados do IPEA divulgados recentemente apontam que apenas uma lei não é suficiente para fazer diminuir os alarmantes dados de violência contra as mulheres. Para que a violência doméstica possa de fato ser combatida, é todo um mundo que precisa mudar. Afinal, esta violência é o reflexo de uma sociedade doente.

 

 

Artigo de opinião

Lola Aronovich é professora-adjunta de Literatura em Língua Inglesa na UFC e autora do blog Escreva Lola Escreva.

 

 

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